quarta-feira, 19 de março de 2008

Um conto para esquecer

Um pôr-do-sol, uma bicicleta e um violão - naqueles dias, era tudo o que ele possuía, e tudo o que realmente lhe importava. Pedalava alguns minutos, levando o instrumento nas costas, todas as tardes, ao voltar do trabalho. Ainda de terno e gravata, o cabelo comprido escondendo os brincos e desmentindo a pose de homem sério que a vestimenta impunha, ele seguia para a agência de turismo onde ela trabalhava.

Invariavelmente, ela aparecia na porta antes que ele chegasse, ainda com o cabelo amarrado num duro penteado de secretária, mas já com as calças jeans da liberdade. Corria, lançava-lhe um longo beijo na bochecha e colocava o violão nas costas, subindo na garupa da bicicleta. Iam para a praia.

Onde falavam de tudo, qualquer coisa, ele reclamando e ela rindo, e vice-versa. Sentados na areia, falavam de sonhos e cantavam juntos enquanto não os realizavam. Abraçavam-se, sorriam, brincavam, mas nunca imaginavam um futuro só para os dois. Eram e estavam amigos ali, o que era bastante para ambos.

Quando ele resolveu ir embora com seu grande amor, ela só sorriu e entendeu, sem perdoá-lo: disse que o esperaria, ali, naquela areia e naquele mar, até que ele voltasse. Queria que ele ficasse, mas deixou-o ir, e ele agradeceu sendo feliz, e nunca esquecendo daquela tarde.

Estava ele, com o mesmo violão e a mesma bicicleta, um ano depois decidindo voltar. No mesmo horário de sempre, procurou-a na agência de turismo; não a encontrando, surpreendeu-se, e pôs-se a procurá-la, ansioso de saudades.

Alcançando a casa da moça, mal cabendo em si de felicidade, foi recebido por sua mãe que, ainda chorando lágrimas recentes, contou-lhe que ele não mais veria a amiga nesta terra. Morrera atropelada, voltando do trabalho, não havia nem duas semanas. Antes de ele ir embora, engolindo a tristeza, a senhora recordou que sua filha sempre sentira falta dele, e lamentou o destino que a levara.


Deitado na areia, sendo o céu estrelado, ele chorava e se deseperava, por não ter voltado a tempo de ver a amiga mais uma vez, por ter desistido dela e, principalmente, por ela não ter cumprido a promessa, a última que lhe fizera...

- Você jurou que me esperaria para sempre! - gritou, para o céu, para o mar, almejando alcançá-la, ela que já nem existia mais... voltou a chorar, lembrando de tudo, não querendo nada mais, além de ouvi-la cantar novamente.

Levou mais de duas horas para que ele percebesse o que deveria ser feito, e que ela realmente não faltara à sua palavra. Arrancou o violão da capa e começou a cantar - sem tom, amargamente, uma música desconexa que mal lhe despontava à memória. Mas, ainda assim, a única forma que lhe restara de voltar para os braços de sua amiga.

segunda-feira, 10 de março de 2008

A Senhora dos Olhos Brancos

Eu voltaria? Por que deveria voltar? Por que seria bom para você, seu mundo, o lixo que se tornou sua visão da vida?

As palavras negaram-se a entrar diretamente no corpo dele. Bailaram, desorientadas, procurando seu caminho natural, sem entenderem a recusa do homem em aceitar o que ele sabia ser o fim da própria vida. Ele vira a recusa nos olhos de diamante dela, muito antes de ouvir sua voz - antes mesmo de encontrá-la, ele sempre soubera. Ainda assim, não reunira coragem suficiente para realizar seu pesadelo. Insistiu, os olhos postos nos braços feridos; ela não demonstrou incômodo na expressão fria do rosto, porém apertou com os dedos ossudos sua estola de raposa branca.

Volte. Volte comigo. Volte para mim!

Ela riu sem querer, ao lembrar do passado. Fora escrava daquele senhor ferido, aquele de joelhos postos ao chão, o corpo cheio de sangue e desespero. A ele servira, por ele perdera irmãos, amigos, e a si própria. Somente recuperara seus sonhos ao ser expulsa de sua pátria. Lançada foi ao deserto de gelo, suas lágrimas congelaram em suas pupilas, fazendo-na cega.

Volte.

Ele não a procurara, nunca antes de agora. Não estendera a mão para a miserável alma, tão cega e perdida quanto o corpo - não, não fora a mão dele que a carregara para um lugar quente, para casa e comida. Tornara-se senhora daquela mão salvadora, e de seu dono, do homem e do lar que nunca vira. Possuía uma felicidade que se tornara tangível, de tão bela. Era rainha e princesa, protegida e heroína, de seu próprio castelo e com seu próprio Rei. E, agora, ele voltava, com cheiro de feridas e de angústia, implorando-lhe para ir com ele?

Os cachos negros de sua cabeça balançaram com sua negativa. Fracamente. O homem não viu, a cabeça baixa escondendo os olhos dos olhos dela, quando ela hesitou. Pela respiração entrecortada dele, ela percebeu que ele chorava, e quase chorou também. Lembrava das tardes verdes na casa verde, enquanto ele pisava com doçura em sua cabeça. Não lembrava o porquê, mas parecia-lhe que era feliz naquela época.

Volte...

Com um gesto, ela o fez levantar. Ergueu os olhos para o escuro de sua visão onde, tinha quase certeza, seria o rosto dele. Não o tocou, nem sorriu em despedida. Ele engoliu com dificuldade entre as lágrimas, mirando os olhos cegos, sentindo na boca o sal de lágrimas que não eram suas. Sinceramente, não entendia como aquela que desejara, além de tudo e de todos, estar ao seu lado, agora negava seu chamado. Mas ele não podia mais viver sem... mesmo com... por favor, volte!

Não conseguiu virar-lhe as costas antes de morrer. Tombou de lado, sem um único gemido, ainda consciente quando seu corpo tornou-se gelo e, depois disso, mais nada.