quinta-feira, 4 de abril de 2013

O Traidor

Duzentos passos. Contando.

Nem se atrevia sequer a arriscar um olhar para o lado. Sabia que sua amiga e alma gêmea estava ali do seu lado, caminhando com igual cuidado, acompanhando seus passos e também sem olhá-lo. Sem olhar para nada, aliás.

Não sabia o que havia à frente. Era uma rua escura, cujas árvores bloqueavam a luz das lâmpadas amarelas da iluminação pública. Havia névoa, mas ele já não sabia se era o tempo frio ou o reflexo de suas lágrimas na vista já cansada.

Segurava a mão da amiga com força, o sangue frio e escorregadio de vez em quando o atrapalhava, mas ele insistia no contato. Apertava-a forte, a única ligação com o mundo real, até que lhe pudesse sentir a pulsação nas suas palmas.

Concentravam-se nos sons dos passos. Assim, não precisavam pensar na cena que ficara para trás.

Existe uma série de coisas que nem todos têm coragem de fazer. Falar a verdade é uma delas; olhar sempre nos olhos, pedir desculpas, abaixar a cabeça quando repreendido. Lutar pelos outros, arriscar a vida por um ideal. Viver como se deseja, ser exatamente quem é...

Fazer um ex-amigo pagar por uma traição.

Com a vida.

Afastavam-se os parceiros, de mãos dadas e quase sem respirar. Nenhum dos dois proferira nem uma única palavra desde que abandonaram o corpo do Traidor. O Traidor trouxera o perigo, o mal e a dor por três vezes para a agência da detetive de cabelos ruivos, que escapara por pouco e com muito pouco, além de perdão e resignação no olhar.

Pietra perdera um par de sapatos na primeira vez, quinze dias no hospital na segunda. A terceira, prometeram os dois parceiros, não aconteceria. E aconteceu, e terminou com a morte de uma colega de Daniel e de Pietra, uma pessoa jovem e otimista que não teve tempo sequer de desfazer o sorriso que sempre levava no rosto.

Duzentos e cinquenta passos, e Daniel, piscando muito para afastar as lágrimas, achou o seu destino. Uma casa térrea, não muito grande, mas bem conservada, com placa de aluga-se na frente da janela. Ele tirou uma chave do bolso com a mão esquerda e abriu o portão, ainda segurando a ruiva pela mão, com tanta força quanto as mãos escorregadias lhe permitiam.

Ao puxar a mão da amiga, encontrou resistência.

Daniel virou-se para Pietra e levantou a mão até tocar no seu queixo, querendo olhá-la nos olhos que a franja laranja escondia. Pela parca luz do luar, só então percebeu suas mãos sujas de sangue. Desajeitado, limpou-as na camiseta e voltou ao gesto amoroso de antes, levantando o rosto da amiga lentamente.

— Ei, ei... Tá tudo bem agora. — disse ele.

— Eu sei.

— Vamos ficar aqui até depois de amanhã, quando todos já vão ter entendido o que o Traidor fez.

— Sim. Antes disso, seremos criminosos comuns.

— Então vamos entrar. — Daniel pediu, mesmo sabendo que Pietra precisava de ajuda.

— Ares... agora é aquele momento do qual te falei.

Ele suspirou, e o ar gelado da madrugada condensou sua ligeira impaciência. O bom era que Pietra conhecia a si mesma melhor do que a maioria das pessoas se permite conhecer: portanto, ela mesma, um dia antes, ensinara-o a convencê-la quando essa hora chegasse.

— Você lembra do que o Traidor nos fez? A todos nós, quando só queria atingir você, de verdade?

— Lembro. — com a lembrança, a confusa detetive arriscou um passo para dentro da propriedade, o que permitiu que Daniel ao menos trancasse o portão da rua.

— E você lembra — continuou ele, quase sorrindo com amargor — lembra de como ele reagiu depois do que fez?

— Lembro de que ele não entendeu que era culpado de coisa alguma. Só disse que fez o que fez pois acreditava ser certo. Falou que eu estava errada e me humilhou porque defendia alguém que acreditava no que ele dizia. Disse que tinha uma opinião... e que agiu de acordo. Mas...

— Mas ele pode estar certo... e não ser responsável pelos resultados que causou. Não é o que você está pensando? Que ele não teve culpa do que aconteceu com você, e nem com a nossa amiga, que não aguentou e se matou?

Pietra ficou calada, dessa vez. Mordia o lábio com alguma força. Daniel achava que sabia o que ela estava pensando.

Agir de acordo com seus sentimentos, com sua visão do mundo, é direito e missão de toda pessoa viva dessa terra. Todo e qualquer movimento, ação, decisão, faz feliz ou fere uma série de pessoas. É escolha do autor se importar com o mundo ou usar seu orgulho para dizer que ele está no direito de acabar com a vida dos outros, pois fez isso com amor.

Amor, como todos sabem, não concede consciência, e pode ser usado para manipular, ferir, matar.

Mas, se você fere e mata, ainda que por amor... pode ser que desperte a ira de quem se importe.

Daniel engoliu o texto em seco, ao ver que Pietra já não chorava. E sim, recordava. O Traidor se recusara a mudar, não quisera voltar atrás ou pedir desculpas, pois se achava com razão. Aos outros, dizia-se injustiçado, pois só quisera ajudar. Era o primeiro a cantar músicas de amor e dizer frases de efeito a respeito de suas dores.

Recordando também, Daniel não conseguiu esconder o sorriso.

Lembrara-se do trunfo de todo o plano deles dois.

E ele explicou para ela, que já o sabia, mas precisava ouvir:

“Onde, exatamente, começa a responsabilidade de uma pessoa? Onde terminam seus atos e começam seus resultados? O Traidor pode mesmo ser inocente. Se ele for, sairemos impunes... pois somos responsáveis por sua morte do exato jeito que ele provocou a morte de nossa amiga.”

— Mas vamos sair impunes, Ares. Sabemos disso. Já sabíamos disso antes de fazer, e fizemos o mínimo possível. Pergunto-me, já, se tivemos mesmo algo a ver com aquilo...

Pietra olhou fundo nos olhos de Daniel, e o que encontrou ali a assustou. Recuou um pouco, encostando no portão, e o pequeno estalo do corpo contra o metal fez o mundo ficar mais escuro. Mas entendeu. Ou melhor, lembrou que entendia.

O plano também era dela, todos os atos e palavras e a decisão de que o Traidor não devia, não podia, ser perdoado. Eram ações que ela nunca deixaria de responder, e pelas quais haveria de pagar...

Porque ela não era uma Traidora. Ela fazia justiça.

A diferença entre um e outro? O Traidor se achava certo, então se escondia quando errava e não assumia seus atos... Falava de amor e fazia a guerra, matava e pilhava sempre com uma flor nos lábios, e fugia quando confrontado.

E ela estava certa. E isso, para o bem ou para o mal, fazia toda a diferença...

quarta-feira, 16 de março de 2011

OLHOS VERDES

Ele tinha olhos verdes. Nada demais, nenhum traço de príncipe ou deus grego. Nenhum modo de marquês, luvas ou afetação, nada. Era um moleque comum, mas de olhos verdes. Brincando de ser quem os outros queriam que fosse. Bombeiro, fazendeiro, modelo, cantor, amante — sempre para os outros.

As pessoas ao redor não, mas ele duvidava da cor dos próprios olhos. “Devem ser castanhos como os de qualquer outro. Devem ser negros, de uma falta de cor sem graça. Talvez eu seja até cego.”. Contudo, nunca deixou de fazê-los brilhar para todos. Tornou-se prisioneiro da imagem que criou — de paciente, de engraçado, de despreocupado. Pessoas vinham de muito longe para vê-lo, e partiam satisfeitas por não o terem conhecido realmente. Quando ele pensava em ficar triste, lá vinham outros espectadores; e o circo recomeçava, com o maravilhoso mágico e palhaço e domador e equilibrista de olhos verdes.

Seu pior passatempo era dominar pequenos mundos. Atraía para si sóis, estrelas e paisagens: seus olhos funcionavam como um gigante ímã e suas mãos como doces garras devoradoras. Ele nunca conseguia enxergar tudo o que destruía, e não tinha piedade— melhor, desconhecia tal sentimento. Mas nem por isso ignorava o que era sofrer: afinal, ninguém conhecia seu mundo, nem mesmo ele; e isso era o mesmo que não ter mundo nenhum.

Até que ele encontrou uma senhora de olhos claros, escuros e incolores, que nunca brilhavam por si só. Ele viu o brilho dos próprios olhos, refletido nos dela, e sorriu, mesmo sem entender. Pôde ver seu próprio mundo naqueles olhos sem forma. Descobrira, talvez, uma companhia para toda a vida, alguém para o qual não precisaria fingir mesmo se quisesse.

Chorando, como nunca antes ousara fazer, abraçou-a com força. E num segundo engoliu seu mundo, seus sonhos, seus desejos (eram todos bem pequenos e couberam bem em uma só mordida), desviando os olhos para o vermelho de outra roupa quando a senhora desfaleceu.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

RESGATE

— Não. Eu não vou passar daqui.

— Pense bem. Estás tão perto agora! Mais alguns passos, tão poucos que nem perceberás a distância. Teu destino está logo ali, ao alcance das tuas mãos.

Ela olhou para o penhasco à frente, cruzando os braços na frente do peito. O cansaço das pernas doídas lhe envergava as costas, deixando uma feia impressão de uma corcunda. Levava as roupas rasgadas e tinha vários arranhões e cortes a enfeitar o corpo esguio. O coque do cabelo loiro havia se desfeito no caminho, e várias mechas escondiam o rosto felino e os olhos azuis-escuros.

Ela parou, mas não pareceu a ele que estivesse realmente pensando. Já estava resoluta.

— Não dá mais. Não importa. Eu não vou.

— Desistirás, então? Depois de todo o caminho percorrido? Sabes o que acontecerá, não é?

— Sei sim. Muito bem. Eu não vou chegar a tempo de unir meu destino ao de meu amado. Isso me dói como cada um de meus cortes dói. Dói como doeu o osso do meu braço ao ser partido, um mês atrás. Há dois anos percorro essa estrada, e dois anos eu possuía para mudar nossa separação em união. Não consegui. — anunciou ela, jogando-se ao chão em seguida.

Chorava, mas a ele pareceu que era mais por ódio do que por desespero. Perguntou-lhe o que lhe afligia, a ela, que havia fugido de seu reino para partir atrás do amado, levado contra a vontade para servir a uma feiticeira maligna. Andara a esmo por dois longos anos, levando consigo somente a companhia dele, um espírito da floresta que se compadecera de seu amargor, e uma espada roubada do arsenal de sua família. Renegara casamentos, riquezas, conhecimentos, a uma vida de felicidade, para somente caminhar e lutar por um grande amor.

Todo aquele caminho, todas as decepções e provas, todas as superações, para pararem ali? A meros passos do grande castelo da bruxa?

— Sim. — confirmou a mulher, limpando o suor da testa com as costas das mãos. — Eu lutei, caí e levantei inúmeras vezes. Chorei e implorei, e mais do que ninguém, você sabe que vivi mais vidas do que pretendia, e todas elas em constante dor.

Mas agora... olhando de frente para este castelo... ele não me parece tão grande. Nem tão seguro. Sabemos que meu amado está vivo. Talvez esteja melhor do que eu. E, se vive bem e com saúde...

... por que não veio atrás de mim?

O espírito da floresta olhou para ela com o sentimento dos espíritos equivalente à compaixão. A paixão cega durara todo aquele tempo, e a dúvida vencera, afinal: o que a mulher não percebia, enquanto virava as costas para o castelo e retomava o caminho para casa, é que paixões cegas não são as únicas paixões que existem.

Ele não a alertou que, embora dias e noites e anos se passassem, ela ainda olharia perdidamente para o sudeste, depois que o sol nascia e logo antes de ele se por. Também se absteve de dizer a ela, doce mulher, que seu sorriso de vez em quando morreria no lento compasso de uma lembrança.

Anos e vidas passariam, pensou o espírito, e ela se lembraria de toques e cheiros, até que não se lembrasse sequer de si mesma — a triste sina de haver caminhado num compasso enlouquecedor, e tão intenso quanto a própria vida. Silenciosamente, ele limitou-se a segui-la, agitando seus cabelos e concedendo um frescor de primavera ao caminho de volta da jovem guerreira.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

IRMÃOS

A lua brilhava no firmamento, indiferente ao frio diabólico que se alojara no cubículo de pedra. Ele não esquecera o esplendor daquela luz, e nunca o faria — porém, tampouco podia agradecer aquela dádiva que não mais o atingia. O olho que lhe sobrar ainda derramava lágrimas, como que lamentando a órbita vazia e sangrenta que a pálpebra esquerda escondia.

Três noites e três dias se passaram naquele tormento, e somente sua certeza inabalável o sustentava vivo. A certeza de sua necessidade, da obrigação de estar ali e não fugir, e de sua inocência.

Engolindo o desespero e a dor junto com as lágrimas, Kilah ergueu os olhos para onde a parca luz iluminava. Passos, ouvira passos... ou seria mais uma alucinação provocada pela sede, pelo sofrimento, pela esperança morta? Não, era real — e, de repente, a porta se abria, e nela estava seu irmão e senhor, o príncipe Carl.

Não partilhava da cor pálida da pele e dos cristalinos olhos azuis do príncipe, contudo, ambos julgavam-se irmãos, nascidos do mesmo corpo e donos da mesma alma. Kilah fora um belo e forte filha da mãe África, criado na morada dos príncipes desde muito criança e aprendendo a esconder de forma astuta, mas sem nunca deixar morrer, o orgulho de seu sangue negro.

Com o belo rosto alterado pela dor, Carl abaixou-se junto ao irmão Kilah. Olhou fundo em seu olho único, redondo e negro, e limpou com a mão enluvada o sangue que quase secara no rosto ferido. Kilah, agora, abandonara-se às lágrimas, nas mãos do único a quem se permitia revelar seus medos.

O moço negro, amarrado à parede como animal, sabia o motivo pelo qual fora aprisionado, torturado e abandonado. Sabia de Annabelle, conhecia o esconderijo de suas mãos e sua perna direita e assumira a autoria do crime por amor a Carl. O filho do rei jamais seria perdoado por seus crimes, perderia seu poder e sua ascendência divina e abençoada — então ele, um pobre criado que nada possuía, ficara feliz em servir e salvar seu senhor.

Kilah não ignorava todo o poder que seu irmão de fronte alva, agora levantando, com olhar distante, possuía: com sua intervenção, seria liberto rapidamente e ganharia de volta sua singela liberdade, único bem que desejava. Movimentou os lábios, forçando a voz que não saíra por três dias, nem mesmo para formar um único grito; queria somente exprimir sua gratidão pelo príncipe não ter esquecido dele e ter vindo buscá-lo.

Entretanto, mudando o semblante em um misto de asco e pavor, Carl saiu da cela sem nada falar, levando consigo toda a esperança do filho do rei negro e abandonando-o a mercê da covardia dos crimes pelos quais assumira a culpa.

Ao nascer do sol, e segundos antes de perder o ar para sempre, o servo Kilah pediu perdão a si mesmo, por ter acreditado, e, com um último grito, em lugar de pedir justiça, clamou por vingança.

domingo, 19 de setembro de 2010

OS GATOS E SARA

Ocorre, para algumas pessoas, de encontrar uma felicidade pequena quando tudo o mais pertence às trevas.

Pode parecer exagero, mas acredite: para quem passou pelo temível vestibular, o inferno é tão tangível e real quanto o noticiário. No ano que antecede a prova, tudo o que acontece de bom parece um pouco menos. Sempre há algo maior e temível à frente, o que afasta todas as felicidades efêmeras.

Acontece, como dito, que algumas pessoas conseguem encontrar algo maior. E Sara havia conseguido uma felicidade que parecia duradoura: um namorado. Tinha cabelos castanho-claros e os olhos sérios quando tudo o mais nele era alegre, e chamava a atenção mais do que deveria. Mas ela gostava dele mesmo assim, e é o que importa.

Ela o amava, ou achava que sim. Tivera dúvida no começo, o que a afastava de qualquer tipo de manifestação excessiva de afeto. Gostava de olhar em seus olhos escuros e não imaginar futuro além do presente, e andava de mãos dadas como se não soubesse fazer mais nada além de andar. Era assim que deveria ser.

Não percebia a sombra ruindo o afeto de seu companheiro. Até que um dia, misteriosamente, sonhou que seu namorado, seu amado companheiro, havia se transformado em um gato. Um gato fofo e arisco, pelo curto malhado de branco e castanho-claro, com belos olhos verdes. Simplesmente se transformou e saiu pela porta branca da casa de sonho que ela não conhecia.

Acordou sem entender o sonho, mas ansiosa por comentá-lo com seu namorado. Esperou que ele ligasse, depois tentou ligar para ele.

Esperou e tentou por cinco dias. A mãe de seu namorado dava as informações corretas, parecia não saber que ele havia sumido. O melhor amigo dele também estranhou suas perguntas, e ambos agiam sem desprezo ou piedade. Aparentemente, ele estava levando uma vida normal, porém sem ela.

Somente após um mês o amigo de seu (ex?) namorado contou toda a história. Disse que ele não se conformava com a falta de afeto dela, decidiu por não procurá-la mais e chorou por uma semana antes de sair de casa pela primeira vez. Só que já estava feliz, com outra pessoa.

Ao perceber que ela iria atrás do ex-namorado, o amigo pacientemente argumentou: “ei, ele já está feliz. Você não faz mais parte dessa história. Você pode se poupar da humilhação de correr atrás dele, não pode?”

Sara engoliu em seco, desligando o telefone. Ele tinha razão, uma lógica cruel de criancinhas morrendo de fome na África. Ela preferiu chorar calada, ficar um mês sem comer direito, numa fossa terrível — pelo menos emagreceria um pouco.

Preferiu, também, nunca mais encontrá-lo. Mesmo que nunca mais fosse muito tempo, achou melhor assim.

Conheceu uma pessoa, quando já ingressava na faculdade. Ele tinha olhos negros e modos alegres, e ela o fazia rir, o melhor presente que ela poderia ter.

Só que ele morreu em um acidente de carro enquanto ia para a casa dela. Foi desviar de um gato no meio da rua e perdeu o controle do veículo. Sara chorou tanto que não se lembrou de sonho algum: aliás, julgou haver esquecido como se sonhava.

Sara passou algum tempo em luto, e, quando concluía o curso da faculdade, amou um homem de cabelos compridos e gestos tão frágeis quanto o seu caráter. Foi feliz ao lado dele até que ele confessou estar se encontrando com uma outra mulher. Era sua vizinha de apartamento, dona de um gato cinza que de vez em quando arranhava a porta de Sara pedindo comida e carinho.

Sozinha em sua sala, chorando as mágoas de sua desilusão com a vida, o universo e tudo o mais, Sara ouviu o miado baixo do gato da vizinha, no corredor do prédio. Ele queria entrar, afinal, não tivera culpa do que sua dona fizera.

Cambaleando, Sara abriu a porta, deixando o animal ganhar sua sala. E, no momento em que ele pulou para seu sofá preferido, ela recordou do sonho de muitos anos atrás. A lembrança veio tão forte que ela recomeçou a chorar.

O gato olhou para ela, e passou a lamber a pata. Ela leu em seus gestos: não ligo para o mundo, só me importo comigo. E isso diz respeito a você, mais do que imagina.

Ela passou vários anos tentando entender o que fizera para o gato. Antes do sonho, e mesmo depois dele, ela sempre adorara bichanos, e brincava com eles sempre que os encontrava. Admirava a elegância e suavidade dos gatos, e nunca mudara de opinião.

De alguma forma, eles a afetavam. Ou seria somente sua imaginação? Era só um sonho bobo, sonhado muitos anos atrás. E duas coincidências terríveis.

Sim, devia ser isso.

O fato é que, com o correr dos anos, as coincidências se repetiram. Tornaram-se, na verdade, até enfadonhas. Ela conhecia uma pessoa, gostava dela, e então a pessoa sumia, levada pela sombra de algum gato. Havia sempre um felino envolvido no sumiço, e ela não agüentava mais chorar por isso.

Agora, muito tempo depois dessa história, ela pode ser vista em seu apartamento. Tem aproximadamente trinta anos, e mora com algumas dezenas de gatos, que se enroscam pelos sofás e comem a comida. A maioria possui manchas acastanhadas no pelo, mas não todos.

Gatos vêm e vão, por isso ninguém se importa em notar quando um deles some. Afinal, são livres. Moram aonde querem, e pelo tempo que desejam. Ninguém sente falta de um gato.

E esta, no final, acabou se tornando a sorte de Sara.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Traições Evitáveis

Enganam-se aqueles que pensam que traições começam com um pensamento.

Algumas assim se iniciam, é claro. Mas são só as inevitáveis, aquelas às quais a mente já se acostumou, e inventou uma desculpa qualquer para não se importar.

“Ele deve estar fazendo o mesmo. Se não, já fez antes.”

Quanto a essas, não há reprimendas da alma. Acontecem, e fim. Não há grandes debates ou questionamentos — a verdade é que a traição é perdoável e corriqueira, e de repente o mais fiel dos namorados transforma-se em um namorado comum.

Esta história não trata de traições perdoáveis, ou não haveria história.

Trata de uma garota comum, de desejos comuns. E com brilho demais nos olhos, vindo de um lugar que nem ela poderia saber onde ficava.

Brilhos castanhos de luar e fogo, de sol e céu. Brilho perigoso, de quem não pode controlar a própria força.

Não seria propício dizer que ela amava: mais real seria dizer que ela tinha um guardião, alguém que havia expurgado todos os seus pecados e a vigiava a todo instante, protegendo-a de seus próprios demônios.

Pois, como todos sabem, toda luz produz uma sombra.

Seu guardião podia vigiar seu corpo, guardar seus pés de algum tropeço, contudo não podia olhar pela alma da garota, aquela alma tão errante quanto o brilho dos seus olhos.

Era julho, e o inverno começava. Os sonhos pareciam frios como o vento, mas mesmo assim o guardião dormia. Acordada, tanto quanto poderia, a menina olhava para as milhares de folhas que haviam caído no chão durante o outono. Elas formavam agora um magnífico tapete, dourado e marrom, macio como pele úmida, e a garota pensava em sua vida, e em seus antigos demônios.

Não, não havia traição em seus pensamentos. Eram imagens confusas que brotavam em sua mente, procurando uma felicidade perdida e enterrada embaixo de folhas que caíram em muitos outonos anteriores.

A menina possuía uma fina corrente de prata amarrada em seu tornozelo esquerdo, que tolhia seus movimentos e a impedia de ir a qualquer lugar onde o guardião não estivesse. Ela olhava para a cordinha não com dúvida, pois sabia que era feliz: olhava como tentando lembrar se havia mesmo uma vida além dali, ou se não passara de imaginação sua.

Havia felicidade antes do guardião? Ela lembrava que sim: recordava um tempo onde podia correr e saltar pelos bosques e prados, encontrando amigos e paixões ao sabor do vento. Mas era uma felicidade nublada, como se pertencente a outra pessoa.

Havia tristeza antes do guardião? Isso ela lembrava que havia, e muita. Mas as lágrimas, infelizmente, só faziam aumentar o brilho dos olhos castanhos.

Olhando para as árvores nuas, a garota não viu o demônio se aproximar. Ele vinha com a forma de antigos amores, tantos amores que a garota não podia sequer diferenciá-los. Não eram uma pessoa, eram uma entidade — por isso mesmo, muitíssimo mais poderoso do que qualquer um.

Ela olhou, mesmo sabendo que não devia. Mesmo se odiando por isso, olhou bem nos olhos daquele que era muitos e um só ao mesmo tempo, e reconheceu a felicidade que não lembrava mais existir.

Não pensou, nem mesmo pôde ver, quando ele a tomou nos braços e a beijou suavemente, sem enganá-la. Não, ela não poderia dizer que fora iludida — sabia onde estava e o que deveria ter feito. Mas não fizera, pois, fraca, não conseguira.

Fraqueza de corpo e de alma, entretanto com consciência. Não era, como se pode ver, algo que se pudesse evitar. Simplesmente era, como ela própria era, sem motivo de existir ou de mudar. Era.

Em seu torpor morno de se saber errada, a menina não percebeu o barulho de coisa trincando e partindo, que varou a noite.

Ainda consciente de que já houvera o erro e o mundo não a perdoaria, ela se forçou a parar. Fechando os olhos, cruzando os braços sobre o peito como se frio sentisse, ela implorou para ficar sozinha. Havia um guardião, não havia? Ou era só uma lembrança?

O demônio demorou muito para entender que não conseguiria tudo o que queria, afinal. Obrigou-a a ficar ao seu lado, e ela não conseguia sair. Demônios são poderosos, muito mais quando se dá poder a eles. E ela soubera o tempo todo dos perigos que eles trouxeram para sua vida: sabia, só não se lembrava.

Os poderes dele estavam em seu coração desde sempre, mas ela lutou mesmo assim. Lutou contra a paralisia, o torpor, a desesperança. Sabia que não seria perdoada, porém ainda assim lutou. Lembrava-se, vagamente, de um prado cheio de folhas marrons, onde seu guardião dormia, e não podia vê-la lutando, perdendo para si mesma.

Concentrou-se, com o restante de sua força de vontade, ignorando os sussurros e carícias... queria voltar para sua paz. Os olhos fechados com força, ela ouviu de repente um grito furioso, uma voz que eram várias, e também os perfumes sumiam aos poucos, substituídos pelo vento frio...

Levados foram, também, pelo cheiro da morte.

A primeira coisa que a garota percebeu foi a falta da corrente que lhe prendia o pé esquerdo. Não haveria mais segurança, nem paz. Porém, ela poderia suportar, desde que ainda houvesse guardião. As coisas poderiam ser consertadas, com certa dose de compreensão e paciência — afinal, ela errara, porém encontrara o caminho de casa. Estava suja e confusa, mas voltara.

Contudo o Guardião jazia, pendurado pelo pescoço no galho mais alto da árvore, morto como as folhas espalhadas pelo chão. A corda com a qual se enforcara, a garota viu com horror, era aquela que outrora estava em sua própria perna. A corrente de prata que a livrara de seus demônios levara seu guardião para a morte.

A traição, por vezes, é mesmo perdoável. Infelizmente, mesmo que assim seja, traições são sempre inesquecíveis.

domingo, 28 de junho de 2009

Drinking

Ele adoraria poder dizer o oposto. Mas a música sempre lhe feria os ouvidos, cortava-lhe a alma como navalha enferrujada. Tocar o saxofone o fazia sofrer, era seu modo de chorar sem que ninguém percebesse.

Quando ela lhe perguntava por que continuava tocando, ele costumava responder que, como todo mundo, nunca vivera um dia no qual não sentisse vontade de chorar. E que ouvi-la cantando com ele era um prazer que superava a dor — ela conseguia ser toda inacreditável quando cantava. Uma fada ou um demônio, com as notas suaves que vinham de longe, muito longe, talvez até de outra alma, contando passagens e sonhos que nunca existiram, perfeita como tudo e como coisa alguma.

Era uma perdida, ambos eram; entretanto, ele fechava os olhos enquanto fazia soar as notas de seu instrumento para não cegar-se com o brilho do olhar dela. Ele amava ouvi-la mesmo quando ela não percebia que cantava, e era o motivo maior pelo qual partilhava com ela seu teto e sua cama. Seu canto era para ele o que Saul ouvia de Davi, e seus demônios particulares limitavam-se a calar, bebiam das palavras doces que provinham da boca de sua Dama dos Olhos Fundos, ficando perdidos e parados diante de tamanha beleza. Ele lhe teria eterna gratidão por cada um daqueles momentos de paz, se assim lhe permitisse sua cobiça.

Sentado em sua cama, tendo o saxofone apoiado na perna esquerda e a cabeça de sua companheira na perna direita, os cabelos parecendo quase dourados à luz do sol que se punha, André costumava se perguntar o que o movia a continuar. Não tinha família, mulher, amigos, grandes ambições, nada. Sempre chegava à conclusão incômoda de que não era feliz, e que precisava mudar aquela realidade.

Quando tal idéia cruzava sua mente, André fechava os olhos com força. Fugindo. E esperando. A voz preguiçosa, morna como a cama e tudo o mais ao redor, aconchegante, provocante, invariavelmente soava mais ou menos nesse instante:

— Dré, toca uma música pra mim?

Ele suspirava. E provocava:

— Sabe que, pra mim, tocar não é prazer nenhum.

E ela ria, o riso quase tão musical quanto sua fala:

— Devia agradecer por conseguir agradar alguém mesmo com suas lágrimas. Não é todo mundo que tem essa sorte.

— Sorte?

— Não discuta, Dré... apenas toque. Por favor.