Duzentos passos. Contando.
Nem se atrevia sequer a arriscar um olhar para o lado. Sabia que sua amiga e alma gêmea estava ali do seu lado, caminhando com igual cuidado, acompanhando seus passos e também sem olhá-lo. Sem olhar para nada, aliás.
Não sabia o que havia à frente. Era uma rua escura, cujas árvores bloqueavam a luz das lâmpadas amarelas da iluminação pública. Havia névoa, mas ele já não sabia se era o tempo frio ou o reflexo de suas lágrimas na vista já cansada.
Segurava a mão da amiga com força, o sangue frio e escorregadio de vez em quando o atrapalhava, mas ele insistia no contato. Apertava-a forte, a única ligação com o mundo real, até que lhe pudesse sentir a pulsação nas suas palmas.
Concentravam-se nos sons dos passos. Assim, não precisavam pensar na cena que ficara para trás.
Existe uma série de coisas que nem todos têm coragem de fazer. Falar a verdade é uma delas; olhar sempre nos olhos, pedir desculpas, abaixar a cabeça quando repreendido. Lutar pelos outros, arriscar a vida por um ideal. Viver como se deseja, ser exatamente quem é...
Fazer um ex-amigo pagar por uma traição.
Com a vida.
Afastavam-se os parceiros, de mãos dadas e quase sem respirar. Nenhum dos dois proferira nem uma única palavra desde que abandonaram o corpo do Traidor. O Traidor trouxera o perigo, o mal e a dor por três vezes para a agência da detetive de cabelos ruivos, que escapara por pouco e com muito pouco, além de perdão e resignação no olhar.
Pietra perdera um par de sapatos na primeira vez, quinze dias no hospital na segunda. A terceira, prometeram os dois parceiros, não aconteceria. E aconteceu, e terminou com a morte de uma colega de Daniel e de Pietra, uma pessoa jovem e otimista que não teve tempo sequer de desfazer o sorriso que sempre levava no rosto.
Duzentos e cinquenta passos, e Daniel, piscando muito para afastar as lágrimas, achou o seu destino. Uma casa térrea, não muito grande, mas bem conservada, com placa de aluga-se na frente da janela. Ele tirou uma chave do bolso com a mão esquerda e abriu o portão, ainda segurando a ruiva pela mão, com tanta força quanto as mãos escorregadias lhe permitiam.
Ao puxar a mão da amiga, encontrou resistência.
Daniel virou-se para Pietra e levantou a mão até tocar no seu queixo, querendo olhá-la nos olhos que a franja laranja escondia. Pela parca luz do luar, só então percebeu suas mãos sujas de sangue. Desajeitado, limpou-as na camiseta e voltou ao gesto amoroso de antes, levantando o rosto da amiga lentamente.
— Ei, ei... Tá tudo bem agora. — disse ele.
— Eu sei.
— Vamos ficar aqui até depois de amanhã, quando todos já vão ter entendido o que o Traidor fez.
— Sim. Antes disso, seremos criminosos comuns.
— Então vamos entrar. — Daniel pediu, mesmo sabendo que Pietra precisava de ajuda.
— Ares... agora é aquele momento do qual te falei.
Ele suspirou, e o ar gelado da madrugada condensou sua ligeira impaciência. O bom era que Pietra conhecia a si mesma melhor do que a maioria das pessoas se permite conhecer: portanto, ela mesma, um dia antes, ensinara-o a convencê-la quando essa hora chegasse.
— Você lembra do que o Traidor nos fez? A todos nós, quando só queria atingir você, de verdade?
— Lembro. — com a lembrança, a confusa detetive arriscou um passo para dentro da propriedade, o que permitiu que Daniel ao menos trancasse o portão da rua.
— E você lembra — continuou ele, quase sorrindo com amargor — lembra de como ele reagiu depois do que fez?
— Lembro de que ele não entendeu que era culpado de coisa alguma. Só disse que fez o que fez pois acreditava ser certo. Falou que eu estava errada e me humilhou porque defendia alguém que acreditava no que ele dizia. Disse que tinha uma opinião... e que agiu de acordo. Mas...
— Mas ele pode estar certo... e não ser responsável pelos resultados que causou. Não é o que você está pensando? Que ele não teve culpa do que aconteceu com você, e nem com a nossa amiga, que não aguentou e se matou?
Pietra ficou calada, dessa vez. Mordia o lábio com alguma força. Daniel achava que sabia o que ela estava pensando.
Agir de acordo com seus sentimentos, com sua visão do mundo, é direito e missão de toda pessoa viva dessa terra. Todo e qualquer movimento, ação, decisão, faz feliz ou fere uma série de pessoas. É escolha do autor se importar com o mundo ou usar seu orgulho para dizer que ele está no direito de acabar com a vida dos outros, pois fez isso com amor.
Amor, como todos sabem, não concede consciência, e pode ser usado para manipular, ferir, matar.
Mas, se você fere e mata, ainda que por amor... pode ser que desperte a ira de quem se importe.
Daniel engoliu o texto em seco, ao ver que Pietra já não chorava. E sim, recordava. O Traidor se recusara a mudar, não quisera voltar atrás ou pedir desculpas, pois se achava com razão. Aos outros, dizia-se injustiçado, pois só quisera ajudar. Era o primeiro a cantar músicas de amor e dizer frases de efeito a respeito de suas dores.
Recordando também, Daniel não conseguiu esconder o sorriso.
Lembrara-se do trunfo de todo o plano deles dois.
E ele explicou para ela, que já o sabia, mas precisava ouvir:
“Onde, exatamente, começa a responsabilidade de uma pessoa? Onde terminam seus atos e começam seus resultados? O Traidor pode mesmo ser inocente. Se ele for, sairemos impunes... pois somos responsáveis por sua morte do exato jeito que ele provocou a morte de nossa amiga.”
— Mas vamos sair impunes, Ares. Sabemos disso. Já sabíamos disso antes de fazer, e fizemos o mínimo possível. Pergunto-me, já, se tivemos mesmo algo a ver com aquilo...
Pietra olhou fundo nos olhos de Daniel, e o que encontrou ali a assustou. Recuou um pouco, encostando no portão, e o pequeno estalo do corpo contra o metal fez o mundo ficar mais escuro. Mas entendeu. Ou melhor, lembrou que entendia.
O plano também era dela, todos os atos e palavras e a decisão de que o Traidor não devia, não podia, ser perdoado. Eram ações que ela nunca deixaria de responder, e pelas quais haveria de pagar...
Porque ela não era uma Traidora. Ela fazia justiça.
A diferença entre um e outro? O Traidor se achava certo, então se escondia quando errava e não assumia seus atos... Falava de amor e fazia a guerra, matava e pilhava sempre com uma flor nos lábios, e fugia quando confrontado.
E ela estava certa. E isso, para o bem ou para o mal, fazia toda a diferença...
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