domingo, 4 de maio de 2008

Ouça a minha voz,
É para você que canto
Agora que nosso tempo se foi
E que não sabemos mais amar
Nós, que fingimos viver
Só para encontrar outras mãos
Que nos livre de nossas lembranças
Mas que não conseguimos esquecer.

O sol já vai raiar
Não há mais estrelas no céu
Mas o passado ainda é nossa casa
O presente há de esperar
Olhe para mim, e veja:
Você diz que me faz sofrer
Você acha que pode me fazer chorar
Mas meus olhos são somente espelhos.

Se pudéssemos prever tudo isso
Talvez a paz fosse nossa
Junto com a dor e a morte
E tudo o mais que nos resta
Não tente mudar o passado,
Aceite o futuro que chega
Pois nada mudará entre nós...
Nada mudará para ninguém...
Enquanto estivermos juntos.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Os Outros

São nove horas de uma noite indefinida. Pietra olha para o céu, sente a brisa que limpa o ar, e percebe que ele está de volta.

Ela ainda está longe de casa; a chuva a alcançará antes que ela chegue ao lar. É uma noite fria e úmida, abençoada em sua limpidez. Pessoas apressadas passam — como podem elas viver na indiferença? Como ela pôde viver assim, ignorando as sombras? Era tarde, e muito, para perguntas: pois ele voltara.

Fechando os olhos, cessando de andar, ela tenta se lembrar: o cheiro, os olhos castanhos, o andar despreocupado com as pernas meio arqueadas. A risada (mas o que o fazia rir, mesmo?) e as brigas. Não lembra de quase nada. É como se ele não existisse para ela, não mais do que um personagem de filme.

O vento agita seu cabelo, mas ela não consegue discernir se é mesmo o vento ou a mão calejada que um dia apertara entre as suas. Ele veio, pensa ela. Veio para me matar.

Sabe disso, como sabe que ele a vigia de qualquer lugar por perto, talvez do topo de um prédio, talvez de alguma janela. Tamanha certeza transforma a esperança de erro em aceitação do fato, e anula o medo. Ela não tem medo de morrer, mas também não deseja tal fim. Muito menos pelas mãos do homem que a abandonara, e agora voltava a desejá-la como se assim fosse seu direito, como se fosse ela uma boneca de corda.

O calafrio aumenta a cada homem que passa por ela, cada um dos muitos paulistanos altos e de cabelos curtos que ela encontra em sua caminhada até o metrô. Não é ele. Não, muito alto; muito gordo; nada a ver; nada... ele está perto. Está vindo.

Não consegue, por mais que tente, lembrar suas músicas preferidas, nem se ele gostava de ficar sozinho. No desespero de esquecer o amor que sentira, Pietra esquecera também da pessoa que ele fora. E ele, que já não é mais nada, nem lembranças, vem agora cobrar seu preço em sangue. Ela treme. Achara que ele a havia esquecido também, mas errara, o que é imperdoável. O vento torna-se mais forte, e gotas grossas caem por toda a rua.

E, por entre a franja que molha, ela o vê. Abraçando a mulher que os separara, o braço posto amorosamente em volta da cintura delgada. Ele olha para trás e não lhe sorri, nem acena, e Pietra finge ignorá-los.

E já não se permite sentir medo, pois o medo de nada serve quando de uma condenação já escrita. Mas diminui o passo, não pode evitar de fazê-lo. Só ela sabe o preço que aquele amor lhe custou, e o quanto de sua vida foi levada com ele, bem como tudo o que ainda a prende a ele. Ela nunca lhe seria indiferente, por mais que tentasse.

Os olhos dele ainda fixos nela, a expressão desafiadora já velha conhecida.

Quando a mulher que ele abraça volta a cabeça para trás, a fim de olhar para Pietra também, a menina abafa um grito.

Não há mais pele ou carne alguma no rosto de sorriso morto. Pois eis que é o destino das que o amam ou são amadas por ele. E Pietra sabe que, até que se fechem para sempre, aqueles olhos escuros a perseguirão por onde ela vá.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Um conto para esquecer

Um pôr-do-sol, uma bicicleta e um violão - naqueles dias, era tudo o que ele possuía, e tudo o que realmente lhe importava. Pedalava alguns minutos, levando o instrumento nas costas, todas as tardes, ao voltar do trabalho. Ainda de terno e gravata, o cabelo comprido escondendo os brincos e desmentindo a pose de homem sério que a vestimenta impunha, ele seguia para a agência de turismo onde ela trabalhava.

Invariavelmente, ela aparecia na porta antes que ele chegasse, ainda com o cabelo amarrado num duro penteado de secretária, mas já com as calças jeans da liberdade. Corria, lançava-lhe um longo beijo na bochecha e colocava o violão nas costas, subindo na garupa da bicicleta. Iam para a praia.

Onde falavam de tudo, qualquer coisa, ele reclamando e ela rindo, e vice-versa. Sentados na areia, falavam de sonhos e cantavam juntos enquanto não os realizavam. Abraçavam-se, sorriam, brincavam, mas nunca imaginavam um futuro só para os dois. Eram e estavam amigos ali, o que era bastante para ambos.

Quando ele resolveu ir embora com seu grande amor, ela só sorriu e entendeu, sem perdoá-lo: disse que o esperaria, ali, naquela areia e naquele mar, até que ele voltasse. Queria que ele ficasse, mas deixou-o ir, e ele agradeceu sendo feliz, e nunca esquecendo daquela tarde.

Estava ele, com o mesmo violão e a mesma bicicleta, um ano depois decidindo voltar. No mesmo horário de sempre, procurou-a na agência de turismo; não a encontrando, surpreendeu-se, e pôs-se a procurá-la, ansioso de saudades.

Alcançando a casa da moça, mal cabendo em si de felicidade, foi recebido por sua mãe que, ainda chorando lágrimas recentes, contou-lhe que ele não mais veria a amiga nesta terra. Morrera atropelada, voltando do trabalho, não havia nem duas semanas. Antes de ele ir embora, engolindo a tristeza, a senhora recordou que sua filha sempre sentira falta dele, e lamentou o destino que a levara.


Deitado na areia, sendo o céu estrelado, ele chorava e se deseperava, por não ter voltado a tempo de ver a amiga mais uma vez, por ter desistido dela e, principalmente, por ela não ter cumprido a promessa, a última que lhe fizera...

- Você jurou que me esperaria para sempre! - gritou, para o céu, para o mar, almejando alcançá-la, ela que já nem existia mais... voltou a chorar, lembrando de tudo, não querendo nada mais, além de ouvi-la cantar novamente.

Levou mais de duas horas para que ele percebesse o que deveria ser feito, e que ela realmente não faltara à sua palavra. Arrancou o violão da capa e começou a cantar - sem tom, amargamente, uma música desconexa que mal lhe despontava à memória. Mas, ainda assim, a única forma que lhe restara de voltar para os braços de sua amiga.

segunda-feira, 10 de março de 2008

A Senhora dos Olhos Brancos

Eu voltaria? Por que deveria voltar? Por que seria bom para você, seu mundo, o lixo que se tornou sua visão da vida?

As palavras negaram-se a entrar diretamente no corpo dele. Bailaram, desorientadas, procurando seu caminho natural, sem entenderem a recusa do homem em aceitar o que ele sabia ser o fim da própria vida. Ele vira a recusa nos olhos de diamante dela, muito antes de ouvir sua voz - antes mesmo de encontrá-la, ele sempre soubera. Ainda assim, não reunira coragem suficiente para realizar seu pesadelo. Insistiu, os olhos postos nos braços feridos; ela não demonstrou incômodo na expressão fria do rosto, porém apertou com os dedos ossudos sua estola de raposa branca.

Volte. Volte comigo. Volte para mim!

Ela riu sem querer, ao lembrar do passado. Fora escrava daquele senhor ferido, aquele de joelhos postos ao chão, o corpo cheio de sangue e desespero. A ele servira, por ele perdera irmãos, amigos, e a si própria. Somente recuperara seus sonhos ao ser expulsa de sua pátria. Lançada foi ao deserto de gelo, suas lágrimas congelaram em suas pupilas, fazendo-na cega.

Volte.

Ele não a procurara, nunca antes de agora. Não estendera a mão para a miserável alma, tão cega e perdida quanto o corpo - não, não fora a mão dele que a carregara para um lugar quente, para casa e comida. Tornara-se senhora daquela mão salvadora, e de seu dono, do homem e do lar que nunca vira. Possuía uma felicidade que se tornara tangível, de tão bela. Era rainha e princesa, protegida e heroína, de seu próprio castelo e com seu próprio Rei. E, agora, ele voltava, com cheiro de feridas e de angústia, implorando-lhe para ir com ele?

Os cachos negros de sua cabeça balançaram com sua negativa. Fracamente. O homem não viu, a cabeça baixa escondendo os olhos dos olhos dela, quando ela hesitou. Pela respiração entrecortada dele, ela percebeu que ele chorava, e quase chorou também. Lembrava das tardes verdes na casa verde, enquanto ele pisava com doçura em sua cabeça. Não lembrava o porquê, mas parecia-lhe que era feliz naquela época.

Volte...

Com um gesto, ela o fez levantar. Ergueu os olhos para o escuro de sua visão onde, tinha quase certeza, seria o rosto dele. Não o tocou, nem sorriu em despedida. Ele engoliu com dificuldade entre as lágrimas, mirando os olhos cegos, sentindo na boca o sal de lágrimas que não eram suas. Sinceramente, não entendia como aquela que desejara, além de tudo e de todos, estar ao seu lado, agora negava seu chamado. Mas ele não podia mais viver sem... mesmo com... por favor, volte!

Não conseguiu virar-lhe as costas antes de morrer. Tombou de lado, sem um único gemido, ainda consciente quando seu corpo tornou-se gelo e, depois disso, mais nada.