terça-feira, 28 de julho de 2009

Traições Evitáveis

Enganam-se aqueles que pensam que traições começam com um pensamento.

Algumas assim se iniciam, é claro. Mas são só as inevitáveis, aquelas às quais a mente já se acostumou, e inventou uma desculpa qualquer para não se importar.

“Ele deve estar fazendo o mesmo. Se não, já fez antes.”

Quanto a essas, não há reprimendas da alma. Acontecem, e fim. Não há grandes debates ou questionamentos — a verdade é que a traição é perdoável e corriqueira, e de repente o mais fiel dos namorados transforma-se em um namorado comum.

Esta história não trata de traições perdoáveis, ou não haveria história.

Trata de uma garota comum, de desejos comuns. E com brilho demais nos olhos, vindo de um lugar que nem ela poderia saber onde ficava.

Brilhos castanhos de luar e fogo, de sol e céu. Brilho perigoso, de quem não pode controlar a própria força.

Não seria propício dizer que ela amava: mais real seria dizer que ela tinha um guardião, alguém que havia expurgado todos os seus pecados e a vigiava a todo instante, protegendo-a de seus próprios demônios.

Pois, como todos sabem, toda luz produz uma sombra.

Seu guardião podia vigiar seu corpo, guardar seus pés de algum tropeço, contudo não podia olhar pela alma da garota, aquela alma tão errante quanto o brilho dos seus olhos.

Era julho, e o inverno começava. Os sonhos pareciam frios como o vento, mas mesmo assim o guardião dormia. Acordada, tanto quanto poderia, a menina olhava para as milhares de folhas que haviam caído no chão durante o outono. Elas formavam agora um magnífico tapete, dourado e marrom, macio como pele úmida, e a garota pensava em sua vida, e em seus antigos demônios.

Não, não havia traição em seus pensamentos. Eram imagens confusas que brotavam em sua mente, procurando uma felicidade perdida e enterrada embaixo de folhas que caíram em muitos outonos anteriores.

A menina possuía uma fina corrente de prata amarrada em seu tornozelo esquerdo, que tolhia seus movimentos e a impedia de ir a qualquer lugar onde o guardião não estivesse. Ela olhava para a cordinha não com dúvida, pois sabia que era feliz: olhava como tentando lembrar se havia mesmo uma vida além dali, ou se não passara de imaginação sua.

Havia felicidade antes do guardião? Ela lembrava que sim: recordava um tempo onde podia correr e saltar pelos bosques e prados, encontrando amigos e paixões ao sabor do vento. Mas era uma felicidade nublada, como se pertencente a outra pessoa.

Havia tristeza antes do guardião? Isso ela lembrava que havia, e muita. Mas as lágrimas, infelizmente, só faziam aumentar o brilho dos olhos castanhos.

Olhando para as árvores nuas, a garota não viu o demônio se aproximar. Ele vinha com a forma de antigos amores, tantos amores que a garota não podia sequer diferenciá-los. Não eram uma pessoa, eram uma entidade — por isso mesmo, muitíssimo mais poderoso do que qualquer um.

Ela olhou, mesmo sabendo que não devia. Mesmo se odiando por isso, olhou bem nos olhos daquele que era muitos e um só ao mesmo tempo, e reconheceu a felicidade que não lembrava mais existir.

Não pensou, nem mesmo pôde ver, quando ele a tomou nos braços e a beijou suavemente, sem enganá-la. Não, ela não poderia dizer que fora iludida — sabia onde estava e o que deveria ter feito. Mas não fizera, pois, fraca, não conseguira.

Fraqueza de corpo e de alma, entretanto com consciência. Não era, como se pode ver, algo que se pudesse evitar. Simplesmente era, como ela própria era, sem motivo de existir ou de mudar. Era.

Em seu torpor morno de se saber errada, a menina não percebeu o barulho de coisa trincando e partindo, que varou a noite.

Ainda consciente de que já houvera o erro e o mundo não a perdoaria, ela se forçou a parar. Fechando os olhos, cruzando os braços sobre o peito como se frio sentisse, ela implorou para ficar sozinha. Havia um guardião, não havia? Ou era só uma lembrança?

O demônio demorou muito para entender que não conseguiria tudo o que queria, afinal. Obrigou-a a ficar ao seu lado, e ela não conseguia sair. Demônios são poderosos, muito mais quando se dá poder a eles. E ela soubera o tempo todo dos perigos que eles trouxeram para sua vida: sabia, só não se lembrava.

Os poderes dele estavam em seu coração desde sempre, mas ela lutou mesmo assim. Lutou contra a paralisia, o torpor, a desesperança. Sabia que não seria perdoada, porém ainda assim lutou. Lembrava-se, vagamente, de um prado cheio de folhas marrons, onde seu guardião dormia, e não podia vê-la lutando, perdendo para si mesma.

Concentrou-se, com o restante de sua força de vontade, ignorando os sussurros e carícias... queria voltar para sua paz. Os olhos fechados com força, ela ouviu de repente um grito furioso, uma voz que eram várias, e também os perfumes sumiam aos poucos, substituídos pelo vento frio...

Levados foram, também, pelo cheiro da morte.

A primeira coisa que a garota percebeu foi a falta da corrente que lhe prendia o pé esquerdo. Não haveria mais segurança, nem paz. Porém, ela poderia suportar, desde que ainda houvesse guardião. As coisas poderiam ser consertadas, com certa dose de compreensão e paciência — afinal, ela errara, porém encontrara o caminho de casa. Estava suja e confusa, mas voltara.

Contudo o Guardião jazia, pendurado pelo pescoço no galho mais alto da árvore, morto como as folhas espalhadas pelo chão. A corda com a qual se enforcara, a garota viu com horror, era aquela que outrora estava em sua própria perna. A corrente de prata que a livrara de seus demônios levara seu guardião para a morte.

A traição, por vezes, é mesmo perdoável. Infelizmente, mesmo que assim seja, traições são sempre inesquecíveis.