terça-feira, 15 de abril de 2008

Os Outros

São nove horas de uma noite indefinida. Pietra olha para o céu, sente a brisa que limpa o ar, e percebe que ele está de volta.

Ela ainda está longe de casa; a chuva a alcançará antes que ela chegue ao lar. É uma noite fria e úmida, abençoada em sua limpidez. Pessoas apressadas passam — como podem elas viver na indiferença? Como ela pôde viver assim, ignorando as sombras? Era tarde, e muito, para perguntas: pois ele voltara.

Fechando os olhos, cessando de andar, ela tenta se lembrar: o cheiro, os olhos castanhos, o andar despreocupado com as pernas meio arqueadas. A risada (mas o que o fazia rir, mesmo?) e as brigas. Não lembra de quase nada. É como se ele não existisse para ela, não mais do que um personagem de filme.

O vento agita seu cabelo, mas ela não consegue discernir se é mesmo o vento ou a mão calejada que um dia apertara entre as suas. Ele veio, pensa ela. Veio para me matar.

Sabe disso, como sabe que ele a vigia de qualquer lugar por perto, talvez do topo de um prédio, talvez de alguma janela. Tamanha certeza transforma a esperança de erro em aceitação do fato, e anula o medo. Ela não tem medo de morrer, mas também não deseja tal fim. Muito menos pelas mãos do homem que a abandonara, e agora voltava a desejá-la como se assim fosse seu direito, como se fosse ela uma boneca de corda.

O calafrio aumenta a cada homem que passa por ela, cada um dos muitos paulistanos altos e de cabelos curtos que ela encontra em sua caminhada até o metrô. Não é ele. Não, muito alto; muito gordo; nada a ver; nada... ele está perto. Está vindo.

Não consegue, por mais que tente, lembrar suas músicas preferidas, nem se ele gostava de ficar sozinho. No desespero de esquecer o amor que sentira, Pietra esquecera também da pessoa que ele fora. E ele, que já não é mais nada, nem lembranças, vem agora cobrar seu preço em sangue. Ela treme. Achara que ele a havia esquecido também, mas errara, o que é imperdoável. O vento torna-se mais forte, e gotas grossas caem por toda a rua.

E, por entre a franja que molha, ela o vê. Abraçando a mulher que os separara, o braço posto amorosamente em volta da cintura delgada. Ele olha para trás e não lhe sorri, nem acena, e Pietra finge ignorá-los.

E já não se permite sentir medo, pois o medo de nada serve quando de uma condenação já escrita. Mas diminui o passo, não pode evitar de fazê-lo. Só ela sabe o preço que aquele amor lhe custou, e o quanto de sua vida foi levada com ele, bem como tudo o que ainda a prende a ele. Ela nunca lhe seria indiferente, por mais que tentasse.

Os olhos dele ainda fixos nela, a expressão desafiadora já velha conhecida.

Quando a mulher que ele abraça volta a cabeça para trás, a fim de olhar para Pietra também, a menina abafa um grito.

Não há mais pele ou carne alguma no rosto de sorriso morto. Pois eis que é o destino das que o amam ou são amadas por ele. E Pietra sabe que, até que se fechem para sempre, aqueles olhos escuros a perseguirão por onde ela vá.