Ocorre, para algumas pessoas, de encontrar uma felicidade pequena quando tudo o mais pertence às trevas.
Pode parecer exagero, mas acredite: para quem passou pelo temível vestibular, o inferno é tão tangível e real quanto o noticiário. No ano que antecede a prova, tudo o que acontece de bom parece um pouco menos. Sempre há algo maior e temível à frente, o que afasta todas as felicidades efêmeras.
Acontece, como dito, que algumas pessoas conseguem encontrar algo maior. E Sara havia conseguido uma felicidade que parecia duradoura: um namorado. Tinha cabelos castanho-claros e os olhos sérios quando tudo o mais nele era alegre, e chamava a atenção mais do que deveria. Mas ela gostava dele mesmo assim, e é o que importa.
Ela o amava, ou achava que sim. Tivera dúvida no começo, o que a afastava de qualquer tipo de manifestação excessiva de afeto. Gostava de olhar em seus olhos escuros e não imaginar futuro além do presente, e andava de mãos dadas como se não soubesse fazer mais nada além de andar. Era assim que deveria ser.
Não percebia a sombra ruindo o afeto de seu companheiro. Até que um dia, misteriosamente, sonhou que seu namorado, seu amado companheiro, havia se transformado em um gato. Um gato fofo e arisco, pelo curto malhado de branco e castanho-claro, com belos olhos verdes. Simplesmente se transformou e saiu pela porta branca da casa de sonho que ela não conhecia.
Acordou sem entender o sonho, mas ansiosa por comentá-lo com seu namorado. Esperou que ele ligasse, depois tentou ligar para ele.
Esperou e tentou por cinco dias. A mãe de seu namorado dava as informações corretas, parecia não saber que ele havia sumido. O melhor amigo dele também estranhou suas perguntas, e ambos agiam sem desprezo ou piedade. Aparentemente, ele estava levando uma vida normal, porém sem ela.
Somente após um mês o amigo de seu (ex?) namorado contou toda a história. Disse que ele não se conformava com a falta de afeto dela, decidiu por não procurá-la mais e chorou por uma semana antes de sair de casa pela primeira vez. Só que já estava feliz, com outra pessoa.
Ao perceber que ela iria atrás do ex-namorado, o amigo pacientemente argumentou: “ei, ele já está feliz. Você não faz mais parte dessa história. Você pode se poupar da humilhação de correr atrás dele, não pode?”
Sara engoliu em seco, desligando o telefone. Ele tinha razão, uma lógica cruel de criancinhas morrendo de fome na África. Ela preferiu chorar calada, ficar um mês sem comer direito, numa fossa terrível — pelo menos emagreceria um pouco.
Preferiu, também, nunca mais encontrá-lo. Mesmo que nunca mais fosse muito tempo, achou melhor assim.
Conheceu uma pessoa, quando já ingressava na faculdade. Ele tinha olhos negros e modos alegres, e ela o fazia rir, o melhor presente que ela poderia ter.
Só que ele morreu em um acidente de carro enquanto ia para a casa dela. Foi desviar de um gato no meio da rua e perdeu o controle do veículo. Sara chorou tanto que não se lembrou de sonho algum: aliás, julgou haver esquecido como se sonhava.
Sara passou algum tempo em luto, e, quando concluía o curso da faculdade, amou um homem de cabelos compridos e gestos tão frágeis quanto o seu caráter. Foi feliz ao lado dele até que ele confessou estar se encontrando com uma outra mulher. Era sua vizinha de apartamento, dona de um gato cinza que de vez em quando arranhava a porta de Sara pedindo comida e carinho.
Sozinha em sua sala, chorando as mágoas de sua desilusão com a vida, o universo e tudo o mais, Sara ouviu o miado baixo do gato da vizinha, no corredor do prédio. Ele queria entrar, afinal, não tivera culpa do que sua dona fizera.
Cambaleando, Sara abriu a porta, deixando o animal ganhar sua sala. E, no momento em que ele pulou para seu sofá preferido, ela recordou do sonho de muitos anos atrás. A lembrança veio tão forte que ela recomeçou a chorar.
O gato olhou para ela, e passou a lamber a pata. Ela leu em seus gestos: não ligo para o mundo, só me importo comigo. E isso diz respeito a você, mais do que imagina.
Ela passou vários anos tentando entender o que fizera para o gato. Antes do sonho, e mesmo depois dele, ela sempre adorara bichanos, e brincava com eles sempre que os encontrava. Admirava a elegância e suavidade dos gatos, e nunca mudara de opinião.
De alguma forma, eles a afetavam. Ou seria somente sua imaginação? Era só um sonho bobo, sonhado muitos anos atrás. E duas coincidências terríveis.
Sim, devia ser isso.
O fato é que, com o correr dos anos, as coincidências se repetiram. Tornaram-se, na verdade, até enfadonhas. Ela conhecia uma pessoa, gostava dela, e então a pessoa sumia, levada pela sombra de algum gato. Havia sempre um felino envolvido no sumiço, e ela não agüentava mais chorar por isso.
Agora, muito tempo depois dessa história, ela pode ser vista em seu apartamento. Tem aproximadamente trinta anos, e mora com algumas dezenas de gatos, que se enroscam pelos sofás e comem a comida. A maioria possui manchas acastanhadas no pelo, mas não todos.
Gatos vêm e vão, por isso ninguém se importa em notar quando um deles some. Afinal, são livres. Moram aonde querem, e pelo tempo que desejam. Ninguém sente falta de um gato.
E esta, no final, acabou se tornando a sorte de Sara.
Um comentário:
Grande conto, é simples como um sonho doido de q você acorda bem no meio da noite e que te persegue e tal... Carol, você lembra de mim? Tenho te procurado faz um tempo aí pela web mas é difícil porque não participo de redes sociais. Só fico lendo as milhares de notícias no google sobre sua carreira de cantora. Aí achei seu blog... vou voltar mais vezes. Me escreve... Tentei te mandar um email mas já não funcionava o link...
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