terça-feira, 31 de março de 2009

Só Por Hoje

O bar ficava muito, muito longe de sua casa, o último ônibus passara já havia algum tempo, e a garota ainda pensava no que pediria a seguir, uma vez que seu copo estava vazio pela quarta vez. O cilindro brilhante, meio borrado, irritava a jovem, lembrando ao mesmo tempo a limpeza doentia da cozinha de sua cunhada e o reflexo de seus próprios olhos no espelho.

Sozinho, o copo no balcão também refletia seus olhos, mas de um modo distorcido, esfumaçado. “Como sempre deveria ser”, resmungou ela, em pensamento. Chamou o barman e pediu outra caipirinha de sakê. De morango, dessa vez — e o homem se foi sem perguntar nada, nem ao menos quantos anos a garota tinha, porque ela sabia que ele estava curioso quanto a isso, mas que não se atreveria a conversar. Não enquanto ela estivesse com aquele olhar.

Não que Pietra houvesse passado muito tempo olhando para alguém: enquanto pudesse evitar, ela nunca olhava nos olhos de ninguém, pelo menos não enquanto estava de folga. E ela estava. Por Deus, ela estava, de folga do trabalho e da vida. Dos poucos amigos e dos muitos problemas, ela simplesmente virara as costas e escapulira. “Só por um instante”, diria ela depois, à guisa de desculpas. Mas no momento ela só se preocupava em disfarçar um pequeno arroto e olhar distraidamente para o homem que preparava sua bebida.

Tinha dezessete anos, os cabelos arrumados num coque mal feito, que realçava as mechas de laranja exótico pintadas por sobre o vermelho escuro do restante dos fios. A maquiagem pesada do rosto e as roupas sóbrias ajudavam a aumentar a idade aparente: não que fosse necessário, pois nem mesmo o melhor dos observadores de um bar às 3 da manhã diriam que aquela postura, aquele cruzar de pernas e aquele jeito de segurar o copo, bebendo com indiferença, eram de uma adolescente.

Pietra Bueno, as pálpebras e cílios tingidas de negro, naquela noite não era somente uma investigadora particular de dezessete anos. Era algo maior, as linhas do seu pescoço haviam se engrossado e seus brincos tocavam de leve o maxilar, abaixo das orelhas, como se temessem o contato com o rosto mudado.

De forma alguma — não era Pietra Bueno que estava ali. Pietra sorriria ao pegar o drinque, mesmo que fosse um sorriso de mentira, pois sorrisos-de-mentira eram o que ela trazia em maior quantidade dentro da enorme bolsa. Esta que senta no bar e aprecia a cor da caipirinha tem o corpo da pequena Pietra, tem seus olhos e sua carne, e seus dedos em anéis, mas não é ela. É algo mais antigo e sujo, escondido a sete chaves.

Hoje saiu para dar uma volta, pois Pietra assim permitira. “Farei parte de você, e você poderá esquecer”. E esquecer era o que Pietra mais desejava, sim, por favor, um pouco de paz...
Fazia três meses desde que ela vira a Morte pela última vez, e seu cheiro podre ainda não a havia abandonado.

É bem mais difícil enterrar os mortos quando eles caminham, certo?

E este Morto estava caminhando naquele exato momento, em algum lugar, sendo feliz. Pietra ainda se assustava a cada vulto, a cada movimento inadvertido das pessoas, a cada sopro estranho do vento; mesmo sabendo, como sabe o próprio nome, que ainda não é chegada a hora de aquele Morto voltar para ela.

(Aliás, ela queria fingir que não desejava mais aquele Morto. Mas todos sabem que não se pode enganar a Morte, e ponto final.)

Parecendo respeitar a dor que o sangue provocara na pequena Pietra, a Pietra de hoje não sorri, mesmo quando vislumbra as memórias distorcidas e os desejos egoístas da jovem. Ela não está aqui para consertar nada, e a pequena Pietra não sabe disso. Que pena. Ainda bem que a pequena Pietra hoje está dormindo, como um anjo dormiria, ou talvez ficasse decepcionada com a conduta de seu corpo naquela noite.

Três meses é tempo demais ou de menos? Depende do tamanho da alma, e de sua vontade. Em três meses, sabe-se-lá-quantas-centenas de pessoas morrem, e mais tantas outras nascem. A Pietra de hoje, ao pensar nisso, olha de lado. Odeia crianças e seus olhos perspicazes e curiosos. Aquela sabedoria que sempre mete medo, que nem parece vir delas.

Por causa dessa sabedoria ancestral presa em pequenos olhos, aliás, Pietra olha cada vez menos para seu próprio reflexo no espelho. Ela reconhece aquele poder das crianças no rosto da pequena Pietra, e isso a incomoda. Não agora, mas sempre incomodou.

Apesar de todo o conhecimento intrínseco, a pequena Pietra estava desmanchando em seu caminho, cada vez mais, até que nem seu parceiro Daniel pudesse conversar com ela, ou entendê-la. Perdera-se dos outros, e antes de perder-se de si mesma, a Pietra de hoje surgira, e tomara o seu lugar. Só por hoje.

Acabou o quinto copo, levantando-se facilmente para quem esteve bebendo durante quatro horas ininterruptas. Sentia somente o corpo um pouco lento, nada com o que se preocupar. O Morto morrera, mas não morrera — e a Viva estava mais morta do que ele. Ironias da vida, o que muita gente chama de “destino” ou de “vontade divina”, e a Pietra de hoje preveria chamar de “essa merda que é a vida”. Quem chamou isso de justiça não conhecia a balança.

O bar não estava cheio nem vazio, e Pietra caminhou para o caixa com passos despreocupados, e de lá para a rua. Ninguém a olhara nos olhos por mais de dois segundos, e ela achou isso bom. Melhor do que estar morta, riu-se. Pelo menos este mundo ainda a via.

A pequena Pietra ficaria desesperada por estar sozinha na rua às quatro da manhã, longe de casa e sem lugar para ir, mas a Pietra de hoje estava satisfeita por estar ao relento, aspirando o ar frio com prazer. Puxou um cigarro e o acendeu, observando a fumaça embaçar a vida por um instante, antes de subir ao céu, onde seu Morto deveria estar, se o mundo fosse um lugar correto.

Mas o mundo era uma merda. Bem assim.

A Pietra de hoje já não achava mais a vida divertida. Ela era só um saco, assim como o são todas as pessoas que fingem prazer, fingem amor, fingem viver, enquanto morrem por dentro, todo dia um pouco. As pessoas têm o péssimo costume de dizer uma coisa quando sentem outra. Mudam de planos, machucam os outros sem perceber, esquecem e apagam o que está escrito a fogo na alma de outra pessoa. Viram as costas para quem sofre por elas, e cobram muito de vidas que não são as suas.

As pessoas, pensou a Pietra de hoje, enquanto fumava, eram falhas e amadas por causa disso. O que ela achava lixo, todos chamavam de “natureza humana”. “Nunca confie nos homens, são todos iguais”. Se são iguais, e sabem disso, por quê não mudam?

A Pietra de hoje estava ali para que a pequena Pietra pudesse correr para um lugar onde não houvesse pessoas mortas, mas, principalmente, onde não houvesse pessoa nenhuma. Esmagando o cigarro com o salto quadrado do sapato preto, e ao mesmo tempo acendendo outro, a Pietra de hoje meio que sorri ao dizer:

“Boa viagem, garota. Aproveite. Hoje eu seguro as pontas por aqui.”